segunda-feira, abril 2

Kamimi - A noite das folhas dançantes

Noite escura, estranha. Quente, apesar do início do Inverno. Tudo estava tão quieto, tão obscuro. Nas ruas, não conseguia avistar nenhuma fonte de luz, a não ser a dos faróis do carro de meu pai. Ruas essas mal-cuidadas, cercadas de árvores e arbustos ressecados pela nova estação. O único som que se ouvia era o do motor do carro, andando quase como se não tivesse rumo algum. Algo estava errado, eu sabia que estava. Ruídos do motor ecoavam por toda a volta, produzindo um som peculiarmente assustador. Não era muito tarde, era por volta das oito horas da noite. Tudo estava tão... inquieto. Esta é a palavra. Apesar da quietude, estava tudo inquieto, nada sereno. As folhas das árvores tremulavam à leve brisa, e eu debruçava-me ao vidro do carro, pensando na vida.
Nesse momento, a momentânea quietude cessou. O som de pneus freiando instantaneamente ecoou por todo o lugar, e passei a ouvir então os gemidos de medo vindo dos outros pessageiros do carro. Como não havia luz alguma, exceto os faróis, não percebemos uma curva. Caso ela não tivesse sido vista a tempo, teríamos ido parar dentro de um lago. Eu estava a ponto de entrar em pânico. Havia três pessoas além de mim dentro do carro. Ao menos, era o que eu achava...
Decidi acender a luz do meu celular. Eu etava desesperado, com medo. Afinal, eu poderia ter morrido alí. Quando a luz ligou, olhei para o lado. Ele estava lá. Cabelos ruivos, olhos verdes, pele sardenta. Sim, era ele. Charlie. Eu não o via há muito tempo, não sei o que ele fazia lá. Levei um susto, mas logo decidi me acalmar.
Ah, claro, Charlie. Ele é um bom e velho amigo. Digamos apenas que ele não pertence a este mundo, ou ao menos não mais. Talvez seja o mais antigo amigo que eu tenho. Desde que eu era pequeno, ele sempre estava por perto. A diferença é que eu envelheci, mas ele continua o mesmo de sempre, literalmente. Há uns 50 anos, ele tem 15 anos. Sei que é difícil entender isso, mas ele deveria ter morrido século passado. Aliás, ele morreu. Mas, o mais importante de tudo, é que ele me ajudava. Quando eu estava mal, ele costumava aparecer. Eu não entendi muito o que aquilo significava no início, mas logo o tempo me ensinou.
Voltando ao fatos, ele estava lá. Não disse uma palavra sequer, e assim também fiz. Como poderia falar com ele? Os outros não podem vê-lo, não têm como saber que ele está lá. Acho que fiquei uns dois minutos olhando fixamente para ele, sem entender o que aquilo significava. Ele não olhava para mim, estava virado para frente, encarando o lago. Ele então virou pra mim, e sorriu. Sorriu brevemente, timidamente. Aquele olhar me disse o que ele queria dizer, mas não podia: "sua hora ainda não chegou".
Infelizmente, não retribui o sorriso. Eu estava assustado demais para agradecê-lo por estar lá naquele momento. Então, o carro entrou em marcha ré. A luz do meu celular se apagou, e pouco antes que ela se ofuscasse, Charlie sorriu novamente e desapareceu no ar, enquanto eu, ainda  mero mortal, voltei a percorrer meus caminhos obscuros.